Mais um motivo apareceu para atrasar a votação do Plano Nacional de Educação (PNE),
o qual já deveria estar valendo para o decênio 2011-2020. Um dos
projetos de lei mais polêmicos dos últimos anos, o PNE define as metas e
as estratégias da educação brasileira para os próximos dez anos,
orientando as políticas educacionais em todos os níveis. Primeiramente
truncado por conta das disputas em torno dos 10% do PIB (leia aqui), agora
é a vez de o gênero entrar nesse balaio de gato. Opositores querem, a
todo custo, retirar a assim chamada “ideologia de gênero” dessa lei.
A rigor, o PNE fala pouco sobre gênero. Essa pequena palavra – que abriga um poderoso conceito – consta basicamente em uma frase do projeto de lei. No artigo 2º, voltado para a superação das desigualdades educacionais, há um destaque que acrescenta: “com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”.
Pronto. Esta foi a deixa que o fanatismo religioso, personificado em
figuras como Marco Feliciano (PSC-SP) e Marcos Rogério (PDT-RO),
precisava para atrasar mais uma vez a votação do projeto.
Críticas de setores conservadores e fundamentalistas têm
denunciado a tal “ideologia de gênero”, defendida pelo PNE quando este
assume um compromisso com a “igualdade”. Esses grupos temem
pela “destruição da família”, os “valores e morais” alicerçados na “lei
natural” e, evidentemente, o avanço das pautas LGBT, dentre as quais a
diversidade sexual, a criminalização da homofobia e o progresso em torno
da despatologização do segmento trans* – pontos, na verdade, que
transcendem a escola.
Aqui, voltamos à velha discussão que já vem sendo encampada neste país há décadas.
Como cidadãos e cidadãs, temos a infelicidade de ver no poder uma corja
de políticos absolutamente descomprometidos com a igualdade, a
tolerância, o respeito à diferença e, pasmem, à própria racionalidade. O
obscurantismo tem sido defendido à luz do dia, e as imagens que vemos
de jovens empunhando cartazes contra a “ideologia de gênero” e, pior
ainda, reforçando a violência que é uma definição única e imposta de
mulher, homem, família, moral etc, é de chocar.
Ignora-se que a igualdade de gênero é tão legítima, necessária e
importante quanto à igualdade racial ou regional. Trata-se, pois, de
discutir a sub-representação política das mulheres, as desigualdades no
mercado de trabalho, a assustadora violência nas ruas e domicílios, a
objetificação sexual na mídia, entre outras. Acima de tudo, a
igualdade de gênero deve ser um valor democrático, tão legítimo quanto à
liberdade religiosa que, diga-se passagem, nunca foi posta em xeque por
nenhum setor progressista neste país. Até porque os mesmos
grupos que defendem a igualdade de gênero são aqueles que apoiam o
Estado laico – a instituição mais democrática no tocante à liberdade
religiosa em uma nação multicultural.
Nesse sentido, gênero é temido porque, de fato, é um instrumento
valoroso. Longe de ser um conceito puramente acadêmico, gênero já se
incorporou no jargão popular, nos movimentos sociais e nas políticas
públicas. Essa rejeição à ideia de gênero reflete um sintoma de uma
ordem social que está se sentindo ameaçada – a título de exemplo, casos
similares aconteceram na França (leia aqui). Dessa
forma, procuram criminalizar não só os indivíduos ditos “diferentes”,
como também seus termos, expressões e conceitos que dão voz a essas
“diferenças”. Gênero é um deles, mas não o único.
Como já reiteramos inúmeras vezes neste blog, gênero é um
artifício teórico, criado na segunda metade do século passado, para
designar as construções sociais sobre o masculino e o feminino.
Em pouco tempo, o conceito de gênero foi apropriado pelo movimento
feminista e se transformou em uma importante ferramenta analítica e
política, com a finalidade de desnaturalizar as opressões de gênero,
descontruir verdades absolutas e imutáveis sobre mulheres e homens,
derrubar as falsas fronteiras que nos demarcam em estereótipos cruéis
para os quais somos levados a acreditar desde pequenos, separando-nos em
pequenas caixinhas que limitam nossas individualidades, potencialidades
e perspectivas.
Portanto, gênero não é uma ideologia. É, ao contrário, a
desconstrução de uma ideologia que imputa à natureza, à biologia e
supostamente a características inatas dos indivíduos, a carga pesada e
histórica de desigualdades entre homens e mulheres, cis ou trans.
Os movimentos sociais continuarão a insistir nesse ponto, até que cada
resquício de obscurantismo de cunho fundamentalista seja derrubado e
possamos, por fim, aprovar um PNE que reflita não só os interesses de
uma educação pública de qualidade, como também de uma sociedade que
pretende se livrar de desigualdades, violências e opressões – de gênero
ou de qualquer outra origem.
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