Vamos ser sinceros: é muito difícil pensar a nossa sociedade sem a noção de família.
Em torno dessa instituição, no sentido mais amplo, rodeiam formas de
organização coletiva e social, direitos e deveres, referenciais para os
nossos relacionamentos. A ideia da família como base da sociedade não se
sustenta apenas no senso comum, mas também é institucionalmente
reconhecida, como se vê no artigo 226 da Constituição Federal. Mas de qual família estamos falando? E que implicações teríamos se a noção de família mudasse?
Em primeiro lugar, deve-se contextualizar qual é a noção hegemônica de família. Nem precisaria dizer que se trata das famílias nucleares completas,
aquelas compostas de papai, mamãe, filhinho e filhinha (todos brancos,
diga-se de passagem). O cachorro, de raça Golden Retriever, é opcional.
Longe de ser um referencial neutro, esse modelo familiar reflete uma
série de valores: o relacionamento fixo e estável entre duas pessoas de
sexos opostos, com vistas à procriação.
Quando digo que este modelo é hegemônico, estou destacando,
justamente, a força dos referenciais que, a cada dia, nos informam qual é
a ”família ideal” para se alcançar uma boa vida afetiva e sexual, para
criar suas crianças, para ter seus direitos garantidos etc. Neste contexto, foi justamente a família nuclear que assumiu o posto de “base da sociedade”,
isto é, um centro de estruturação da sociedade, um local de proteção e
cuidado por excelência (MEYER, KLEIN & FERNANDES, 2012).
Longe de negar o peso que este modelo familiar desempenha ainda hoje,
pretendo demonstrar que a família é um conceito muito mais amplo do que
esse. Apesar da CF/88 parecer restrita a respeito disso, uma série de
documentos posteriores alargaram tais definições, nos permitindo
entender famílias como agrupamentos afetivos de laços
consanguíneos, de aliança ou afinidade, nas quais se organizam relações
sociais de geração e gênero e obrigações recíprocas e mútuas. A
redação, em si, varia, mas a lição que fica é a seguinte: família não é
só um homem e uma mulher juntos com a intenção de ter filhos.
Cada vez mais se tornam visíveis os tipos de família que fogem a essa
regra. Primeiramente porque os casamentos têm durado menos tempo, o que
joga luz às famílias monoparentais ou recompostas (derivadas de um
segundo casamento). Ainda, há de se considerar as famílias extensas ou
comunitárias, nas quais o cuidado das crianças é compartilhado entre
mais de uma unidade familiar. Por fim, não poderia deixar de mencionar
as famílias formadas por casais homo-afetivos.
Em meio a esses apontamentos, fica a questão: o que está em jogo quando discutimos o conceito de família? Claudia Fonseca (2005) ressalta que existe uma dimensão temporal da família,
ou seja, uma mesma família muda ao longo do tempo. Por exemplo: um
casal heterossexual se junta e tem dois filhos. O casal se separa e a
guarda das crianças fica com a mãe. Ao crescer, um dos filhos resolve
morar com o pai. O outro, já mais velho, sai de casa para estudar. Ao se
formar, retorna para a casa da mãe. Enquanto isso, o pai casou de novo e
teve mais algumas crianças. E assim por diante. Em que momento olhamos
para essa família para classificá-la dentro de um determinado modelo?
Qual “família” é essa família?
Condições sociais distintas também alteram as configurações familiares.
Se antes as/os filhas/os de setores médios casavam mais precocemente,
saindo de casa logo aos 18 anos, hoje essa saída é mais tardia,
sobretudo com a necessidade de obter um diploma de nível superior.
Outros fatores, como o desemprego, também alteram as relações
geracionais dentro de casa. Assim, o recorte sócio-histórico das
famílias é bastante determinante, basta pensarmos na substituição das
famílias numerosas do campo para as pequenas famílias urbanas vivendo em
apartamentos, ao menos nos setores médios. Em outros, as mudanças podem
ser outras.
Tudo isso para dizer que prever um modelo familiar “adequado”
é uma atitude equivocada. As famílias são e sempre foram diversas.
Portanto, se ainda hoje considerarmos a família a base da sociedade
(seja lá o que isso queira dizer!), devemos reconhecer, no mínimo, que
essa é uma base múltipla e instável. Reconhecer isto é o
primeiro passo para evitar o proselitismo e a demagogia daqueles que,
sob um discurso em prol da “família”, sustentam modelos familiares
exclusivos e incompatíveis com as demandas sociais de todos os grupos e
sujeitos da sociedade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário