A fotógrafa
Chloe Aftel
decidiu fazer um ensaio registrando o dia-a-dia de alguns jovens
não-binários, após uma dessas pessoas, Sasha Fleichman, ter sofrido uma
agressão que virou notícia pelo mundo. Enquanto dormia no ônibus,
voltando da escola, tentaram atear fogo em seu corpo. Sasha foi
hospitalizadx e apresentava queimaduras graves.
Micah: “Bonecas são para meninas, carrinhos são para meninos e quebra-cabeças são neutros. Meu gênero é um quebra-cabeça”.
Edie na casa dos pais de seu namorado, em Berkeley.
Emma,
20 anos: “Eu acho que um monte de gente gostaria de ver o gênero como
esta escala de azul e rosa. Eu nunca me identifiquei realmente com algum
os lados. É muito mais complicado – minha identidade varia muito num
determinado dia”.
Sarah
Levine, uma das pessoas mais próximas de Sasha, diz que o mundo ideal
seria onde o gênero não importasse – onde o tipo de pessoa que você é
fosse o mais importante.
Marilyn, 24 anos, não se sente nem como homem nem como mulher, e se denomina apenas adultx.
Mark em seu apartamento em São Francisco. Usa roupas masculinas e femininas.
Rain, lida como menina ao nascer, com 24 anos é modelo profissional posando para artigos masculinos.
Para
entender um pouco a vida desses jovens, o peso de sua auto-identificação
e a razão para tamanhas hostilidades, é necessário que nos aprofundemos
no cerne da causa. Para isso, podemos levantar questionamentos através
de análises da Teoria Quee, que sugere que gênero é uma
construção social complexa, modelada e reinventada incessantemente por
subjetividades atuantes, não havendo papeis sexuais biologicamente
determinados – mas sim, imposições sócio-culturais sobre os corpos,
formando a noção de gênero. A maleabilidade do gênero aponta para
a própria complexidade do ser e – ainda além – do ser social e das
estruturas sociais que o abrigam e que atuam sobre ele.
Afinal, o que é gênero? A ideia comum é
do sexo como o biologicamente definido (órgãos femininos ou masculinos);
gênero como atribuições socioculturais referentes ao sexo (o que é ser
‘homem’ ou ser ‘mulher’); e identidade de gênero como a auto-afirmação
do indivíduo nesse espectro, a principio binário, compulsoriamente
designado pela sociedade. Atualmente, essa coerência compulsória se
apresenta quando, ainda na barriga da mãe, assim que constatado que o
bebê tem genitais masculinas ou femininas, uma série de papeis de gênero
começam a se manifestar: “rosa para meninas, azul para meninos”;
“boneca para meninas, carrinho para meninos”; papeis que com o
crescimento ramificam-se, agravam-se.
Mas afinal, o sexo, o corpo,
apresenta-se somente como o ‘biologicamente definido’? O quanto ele atua
e o quanto ele é modificado pelas atribuições sociais de gênero? Sexo e
gênero não podem ser independentes entre si?
Como o gênero, tão abstrato, se
materializa no meio social? Como os papeis de gênero são perpetuados,
fiscalizados e controlados nesse meio? A teoria de gênero atende a todas
as formas de auto-afirmação existentes? A auto-afirmação de gênero
dentro dessa teoria contemplaria os indivíduos que se auto-identificam
dentro da própria atribuição binária (como os transsexuais e
transgêneros), embora contrariem o gênero que lhes foi compulsoriamente
designado ao nascer? Mas e quanto àqueles que se identificam com os dois
gêneros? Mais complexo, e aqueles que não se identificam com nenhum?
Com os estudos de Judith Butler,
filósofa estadunidense com grande aceitação no feminismo contemporâneo, a
noção de gênero foi desarticulada em uma nova face: a performatividade.
Diante disso, podemos entender um pouco melhor a identidade das pessoas
não-binárias – pessoas que rejeitam as atribuições binárias (ser
‘homem’ ou ‘mulher’) de gênero.
Sasha
Fleischman: foi agredidx em um ônibus por usar roupas consideradas
socialmente como de ambos os gêneros. Na foto, Sasha havia acabado de
voltar do hospital.
A inovação conceitual da teoria de
Butler que nos permite entender melhor o não-binarismo reside na noção
de “performance de gênero”. Parafraseando Simone de Beauvoir com “não se
nasce mulher, torna-se uma”, Butler apresenta o gênero como uma
realização performativa compelida pela sanção social. O corpo atuaria na
reprodução de signos, na repetição estilizada de atos que constroem e
corroboram noções previas de gênero. Para Butler, o corpo é vulnerável a
esses signos, no sentido de que há signos, como a linguagem, que são
performativos – operam, fazem -, enquanto o corpo é feito e efeito,
sustentado e ameaçado por ela.
Butler remete muito à atuação
performativa da fala e da linguagem, afirmando que o ato de fala obriga o
corpo a espaços de inteligibilidade (leitura social), regulação e de
legitimação.
“O corpo, efeito do ato de fala e do seu
ritual, encontra um lugar epistemológico (através do ato de fala, o
corpo torna-se inteligível), um lugar ontológico (o corpo torna-se
regulável) e um lugar político (o corpo torna-se passível de legitimação
e normatização). Os atos de fala limitam os contornos dos corpos, suas
articulações possíveis, suas ações possíveis. A imposição arbitrária num
ritual iterável tem como efeito a fixidez e a inevitabilidade.”
Assim, para a filósofa, o gênero não
atua somente atribuindo sanções culturais aos corpos sexuados – mas
também aprisiona o sexo em uma natureza inalcançável à nossa crítica e
desconstrução. Seria pela repetição de atos – gestos e signos – e sua
inserção no âmbito cultural, que se construiriam as percepções dos
corpos masculinos e femininos tal como os vemos atualmente, e as noções
de gênero. Para Butler, gênero é um ato intencional, um gesto
performativo que produz significados. (PISCITELLI, 2002).
Mas o que isso tem a ver com as pessoas não-binárias?
É na característica performativa que reside a possibilidade de contestação. E é esse o papel dos não-binários.
As pessoas não-binárias contrariam uma das (muitas) normas de gênero que impõe que:
“As pessoas são ou exclusivamente mulheres, ou exclusivamente homens.”
Contrapor o binarismo, ao mesmo tempo em
que fazendo uma performance de ambos os gêneros (através de signos
visuais, como a roupa, ou outros signos performativos, como a
modificação na linguagem), é atingir a estruturação compulsória de
gêneros em seu cerne. As pessoas trans subvertem a ordem compulsória
entre sexo, gênero e desejo; ordem que, segundo Butler, talvez com
inspirações foucaultianas, produziria uma falsa noção de estabilidade,
ligada a uma matriz heterossexual, cobrando, compulsoriamente, essa
‘coerência’ entre gênero, sexo e desejo – hetero e ‘cis’normativa.
Baseados nos estudos de Butler, alguns
professores americanos pensaram em uma dinâmica de análise da
performance de gênero. A atividade era muito simples: o professor ou
professora se colocava diante da turma e pedia que os alunos
questionassem quão bem ele ou ela desempenhava o papel do gênero em que
eles os liam. O objetivo era analisar as características “femininas”
(tidas como femininas para a sociedade) e as “masculinas”. Os relatos
são de que muitas percepções inusitadas foram apontadas: desde o cabelo
“Joãozinho” da professora, tido como masculino, até a sua eloquência e
articulação, tidas também como características masculinas. O resultado
permitiu a eles uma análise profunda da leitura de gênero da sociedade,
além do efeito da reprodução de signos condizentes às atribuições
sociais de gênero. A construção social de gênero se materializa na
performance individual de gênero.
A existência de identificações
não-binárias, além de essencialmente contestadoras, nos leva a fortes
questionamentos quanto à estrutura de gênero que ‘rege’ a sociedade.
Como demonstrado pela dinâmica dos professores, dificilmente algum
indivíduo corresponderá a todos as características consideradas
inerentes ao gênero que lhe é designado. Nenhuma ‘performance de gênero’
é perfeita. Se o indivíduo “escolhe um gênero que lhe é mais próximo
daquilo que sente que é enquanto ser-no-mundo”, se as noções de gênero
aprisionam nossos corpos e limitam nossa subjetividade, e se nem pessoas
trans (que não se identificam com o gênero que lhes foi
compulsoriamente designado ao nascer) e pessoas cisgêneras (que se
identificam com esse gênero) são perfeitamente contempladas por essas
noções de gênero, por que elas existem? A reação popular à
auto-afirmação de pessoas como Sasha nos leva a constatar quão normativo
é o gênero – e o quão nocivo pode tornar-se.