terça-feira, 2 de julho de 2013

Transitar em outro gênero é curiosidade de criança, mas comportamento insistente merece atenção

Diagnóstico de disforia de gênero é melindroso e Brasil adota postura de cautela apesar de já ter diminuído a idade para a cirurgia de correção do sexo

 

Gênero é o conjunto de características que identifica a pessoa. Na infância, os caracteres sexuais secundários não se manifestam (Valeria Mendes/EM/D.A Press)

Gênero é o conjunto de características que identifica a pessoa. Na infância, os caracteres sexuais secundários não se manifestam
Hoje era o dia de levar brinquedo para a escola, o que levou?
A Barbie.
Zombaram de você?
O Vitor pegou a Barbie e mostrou para todo mundo me chamando de mulherzinha.
Você precisa aprender a se defender, filho...
Só por que eu brinco de boneca não significa que sou menina. Meu pai não cuidou de mim, por que não posso cuidar de boneca?
Então é isso que você vai dizer aos colegas da próxima vez.

Joana* é mãe de Francisco*, de 6 anos, e Pedro*, de 7. Desde os 3 anos do caçula, começou a ficar intrigada pelo fato de o menino não se empolgar com qualquer presente que recebia. “Notava que meu filho sorria e me perguntava: ‘do que ele gosta’? Nessa mesma época da vida do Pedro, tudo virava carrinho na mão dele”, observa a mãe. Aos 4, Francisco e os pais iniciaram um acompanhamento terapêutico. “Eu queria dar a Barbie para ver se ele se alegrava com algum presente, mas a orientação é que nós [os pais] não podíamos dar a boneca, mas se ele ganhasse de outra pessoa não teria problema, segundo o terapeuta”, relembra Joana.

Foi das mãos de uma coleguinha da escola que o menino recebeu a boneca no dia do aniversário. Joana conta que a mãe da garotinha se aproximou constrangida explicando com todo o cuidado que a filha insistiu muito para que aquele fosse o presente. Despachada, Joana tranquilizou a outra mãe e, finalmente, Francisco foi agraciado com o brinquedo que tanto queria.

Para Francisco, o que existe é a vontade de brincar com a boneca. Já para muitos adultos, e até para as crianças socializadas por eles, o interesse do garoto causa estranheza e desperta questionamentos sobre o significado desse comportamento.


Em contraponto ao fatalismo de rótulos precipitados, o professor de psiquiatria infantil da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Arthur Melo e Kummer, provoca: “se você pudesse imaginar uma máquina em que as pessoas pudessem entrar e sair como alguém do sexo oposto, quantas pessoas entrariam por curiosidade?”, pergunta.

O especialista cita dados de pesquisas realizadas nos Estados Unidos que mostram que a curiosidade ou interesse em ocupar o lugar do outro gênero é mais comum nas meninas do que nos meninos durante a infância. “Varia entre 2 a 4% no caso dos meninos e entre 5 a 10% de meninas”. Na adolescência, o desejo de “bisbilhotar” o gênero oposto também prevalece entre as garotas. “Entre os meninos fica em torno de 10% e, nas meninas, a incidência é de 20%”, completa. Para Arthur, é uma frequência relativamente alta de, em algum momento, desejar pertencer ao sexo oposto. “Isso não é patológico, existem vantagens e desvantagens de ser de cada gênero”, observa.

O outro gênero: mistério e curiosidade
“Ele não pode confundir o gênero. Precisamos dar a certeza ao Francisco de que ele é um menino. Desde que ele entenda quem ele é, poderá fazer a escolha que quiser”, sentencia Joana. Segundo ela, o filho se identifica mais com o universo feminino. “Minhas amigas brincam: ‘ele é você colorida’. É até aflitivo”, conta. Em função da profissão, a belo-horizontina precisa viajar muito e Francisco ficava mais sob os cuidados do pai. “Ele falou cedo, a evolução da linguagem dele é absurda... O Francisco sempre se expressou com muita clareza e autenticidade e uma das coisas que ele me disse em um retorno de viagem foi: ‘você ainda é da nossa família?’”, relembra. Em outra ocasião, o pequeno também soltou: “mamãe, você mora nessa casa ainda?” A mãe chegou a imaginar que as ausências frequentes tivessem relação com o comportamento do filho, hipótese que depois descartou. “Eu voltei a ficar mais em BH e ele continua com esse gosto”, afirma Joana.

A mãe conta que aos 4 anos “ele enlouqueceu com a figura da sereia. Tudo era a sereia, cabelo tem que ser grande, o caderno rosa. Ele imitava cantoras e canta muito bem, desenha lindamente e escreve muito bem. O que ele vai ser eu não sei, mas ele representa a mulher em tudo”, observa. De uma amiga da mãe, Francisco ganhou a Barbie Sereia que precisou vir de fora do Brasil, já que por aqui não se vendia ainda. “Respeito a sensibilidade dele, mas trato essa Barbie como qualquer outro brinquedo dele ou do meu outro filho”, diz ela.
Se você pudesse imaginar uma máquina em que as pessoas pudessem entrar e sair como alguém do sexo oposto, quantas pessoas entrariam por curiosidade? (SXC.hu/Banco de Imagens)Se você pudesse imaginar uma máquina em que as pessoas pudessem entrar e sair como alguém do sexo oposto, quantas pessoas entrariam por curiosidade?
Joana conta uma história que aconteceu na escola que revela a personalidade autêntica do filho: “a professora me contou que estavam preparando a encenação de uma peça de teatro e escolhendo os papeis. Ela perguntou quem queria fazer a madrasta e o Francisco respondeu empolgado “eu, eu”. As coleguinhas da turma retrucaram argumentando que ele não poderia fazer a personagem porque era um menino. A educadora, tentando mediar a situação, sugeriu então que a personagem fosse mudada para padrasto. Foi então que Francisco retrucou: “então eu não quero” e foi para o fundo da sala.

“Queremos fortalecê-lo porque ele já se magoou com zombaria”, afirma a mãe. Apesar de Francisco já ter verbalizado que preferia ter nascido menina, a mãe lembra que ele perdeu a empolgação com a boneca como já deixou de lado outros brinquedos, comportamento comum da infância. O pequeno até se “livrou” da primeira Barbie que ganhou passando o presente para uma coleguinha, mas não sem antes customizá-la. “Ele mudou o cabelo e com saquinhos de pipoca fez uma roupa nova. Eu não vi, mas meu marido disse que a boneca ficou sensacional”, conta.

Da boca do filho saem muitas frases de efeito e uma que Joana gosta muito é: “Eu não quero ser o Clodoaldo Valério, mãe”, se referindo ao personagem interpretado pelo ator Marcelo Serrado em uma novela. Ela também ouviu da professora do filho que o menino não é lembrado na turma como alguém que gosta de brincar de boneca, mas como quem lê melhor, escreve melhor, desenha melhor e canta melhor.

O interesse e flerte com o outro gênero na primeira infância pode ou não significar um comportamento que vai seguir até a adolescência e a vida adulta. Há situações, entretanto, em que o desconforto e não aceitação do corpo, desde os primeiros anos de vida, é tão intenso que indica a existência de uma condição irredutível.


 

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