terça-feira, 11 de junho de 2013

Crianças transgêneros desafiam leis e políticas escolares nos EUA

Desde a pré-escola, escolas tentam se adaptar para incluir todos os alunos.
Em 2012, mudar de identidade de gênero deixou de ser 'doença' no país.

Ryan faz acrobacias com suas amigas no recreio do colégio, num subúrbio de Chicago; nascida menino, ela se identifica como menina desde os primeiros anos de vida (Foto: AP Photo/M. Spencer Green)Ryan faz acrobacias com suas amigas no recreio do colégio, num subúrbio de Chicago; nascida menino, ela se identifica como menina desde os primeiros anos de vida (Foto: AP Photo/M. Spencer Green)
 
Para incluir e tratar igualmente todos os alunos e alunas, inclusive os que se identificam com gêneros diferentes aos seus biológicos, escolas dos Estados Unidos estão aprendendo empiricamente a se adaptar a uma realidade longe do branco e preto que definem que roupas, brinquedos e atitudes são de meninos ou de meninas. O assunto foi tema de longa reportagem da agência de notícias Associated Press. O G1 publica abaixo um resumo com os principais trechos da reportagem da AP:
A presença de crianças e adolescentes que adotam outra identidade de gênero é pequena nas escolas, mas tem crescido. No distrito escolar da cidade de São Francisco, por exemplo, o gerente de programas de saúde escolar Kevin Gogin afirmou à reportagem que, de acordo com uma pesquisa com os estudantes, 1,6% dos alunos de ensino médio e 1% dos alunos dos anos finais do ensino fundamental se identificavam como transgênero ou variante de gênero.
As crianças dos anos iniciais não foram incluídas na pesquisa, mas Gogin disse à AP que o distrito já havia identificado alunos e alunas nesta situação nestes anos.
Com Ryan, que hoje cursa o quarto ano do fundamental em um subúrbio da cidade americana de Chicago, a adoção de outro gênero aconteceu ainda mais cedo. Desde os dois anos de idade, ela mostrava atração pela cor rosa e usava as calças do pijama para improsivar uma peruca de cabelos compridos. Na época, ela foi diagnosticada com desordem de identidade de gênero, e os pais começaram a incentivar atividades e objetos típicos de meninos. Quando a estratégia não deu certo, passaram a proibir qualquer menção ou brincadeira tipicamente feminina. Ao perceberem que o efeito da repressão não seria benéfico, decidiram aceitar as escolhas da filha.
Desde 2012, a "desordem de identidade de gênero" foi removida da lista de doenças de saúde mental, e outros pais de crianças que não se encaixam no padrão polarizado de meninos e meninas recebem o apoio de médicos e especialistas que não enxergam mais esse fenômeno como algo a ser consertado.
Para alguns deles, a evolução da percepção sobre pessoas transgênero (em suas várias formas, desde que quem se identifica com o gênero oposto até quem se considera parte homem e parte mulher) vai evoluir da mesma forma como a visão a respeito da homossexualidade, que há cerca de 40 anos deixou de ser considerada uma doença mental.

Contra o bullying na escola e na família
Ainda no jardim de infância, ela decidiu, com o apoio dos pais, abandonar a rotina de vestir roupas de menino na escola e trocá-las, assim que chegava em casa, por saias e uma blusa combinando. No primeiro dia da mudança, a mãe dela, Sabrina, foi à sala de aula explicar aos coleguinhas que Ryan gostava de se vestir como menina e fazer coisas de menina.
Algumas crianças contaram suas próprias histórias que quando vestiram roupas indicadas a outros gêneros por motivos variados, e o grupo superou a notícia. As crianças do ensino fundamental, porém, começaram a perseguir Ryan na hora do recreio. Para evitar aborrecimentos, a diretoria da escola garantiu a aplicação da política de intolerância ao bullying.
O processo, porém, não foi totalmente fácil, segundo contou a mãe da criança, Sabrina, à reportagem da AP. Antes da escola, Ryan começou a vestir roupas convencionalmente atribuídas a meninas em parques, no bairro e com a família.
Algumas pessoas não aceitaram a mudança, criticaram o apoio dos pais por acharem Ryan nova demais para saber o que queria, ou simplesmente pararam de reconhecer a criança. "Era como se ela não existisse mais", disse a mãe. A posição dela e do pai foi, além de mudar de bairro e buscar uma escola que parecesse mais aberta, enfrentar o problema de frente e com uma posição clara: eles reuniram os parentes e lhes informaram que estariam do lado da criança.
"Nosso compromisso é que nossos filhos estejam em um ambiente acolhedor e amoroso, e se alguém não concorda com isso, então não vai estar por perto", explicou o pai de Ryan, Chris.
 
A tolerância na prática
 
"Por uma margem grande, a maioria dos educadores quer fazer a coisa certa e quer saber como tratar todas as suas crianças igualmente", afirmou à reportagem da AP Michael Silverman, diretor-executivo do Fundo de Defesa Legal e Educação Transgênero da cidade de Nova York. Segundo ele, atualmente 16 estados americanos e o Distrito de Columbia (capital dos EUA) já contam com leis que garantem os direitos de pessoas transgêneros. Mas, mesmo nos estados que não contam com essa legislação, os distritos escolares estão geralmente abertos à orientação para a diversidade.
O problema, porém, é que as práticas de aceitação e tolerância à diversidade ainda não são muito difundidas. Entre as perguntas mais comuns estão a definição de qual banheiro a criança vai usar, onde ela vai se trocar para a aula de educação física e que pronome os professores e colegas devem usar para chamar a criança transgênero.
Dados recentes mostram que a falta de informação e socialização entre os estudantes transgêneros podem ter resultados alarmantes.
Um pesquisa nacional feita em 2010, feita em conjunto entre o Centro Nacional pela Igualdade Transgênero e pela Força Tarefa Gay e Lésbica Nacional, mostrou que 41% das pessoas transgêneros entrevistadas no país admitiram que já tentaram cometer suicídio. Mais da metade (51%) delas afirmou que sofreu bullying, assédio, agressão ou expulsão da escola por serem transgêneros.
Ryan, Scott Morrisson, Eli Erlick e Coy Mathis; alunos e alunas transgêneros nos EUA (Foto: AP Photo/M. Spencer Green/Don Ryan/Rich Pedroncelli/Brennan Linsley) Scott Morrison, que mora no estado de Oregon há três anos, e há dois fez a transição de menina para menino, afirma que o apoio da família, dos amigos e de sua nova escola, inclusive da ajuda de um conselheiro escolas, fez toda a diferença no processo, inclusive evitando que ele considerasse tirar a própria vida.
"A identidade de gênero é provavelmente a parte mais importante de mim, é a descoberta mais importante que fiz sobre mim mesmo", disse o formando do ensino médio à AP.
Para Eli Erlick, uma aluna transgênero que vai terminar o ensino médio neste ano em Willits, uma pequena cidade no norte da Califórnia, a transição de menino para menina começou aos 8 anos. Na época, há cerca de dez anos, a sensação que ela descreveu à agência era de ser "a única pessoa desse jeito". Além de ser ridicularizada em público pelos próprios professores, a aluna não tinha permissão para usar o banheiro das meninas. Para contornar o problema, ela fingia alguma doença para poder ser liberada e usar o banheiro de casa.
Em geral, porém, ela afirma ter notado uma mudança geral nas atitudes em relação às diferenças entre identidades de gênero. Hoje, Eli coordena uma organização que treina e orienta escolas a lidar com pessoas como ela, além de ter ajudado seu próprio distrito escolar, além de outros na Califórnia, a definir políticas sobre o tema.

A inclusão escolar na Justiça
 
Ainda que haja mais conscientização, nem todas as relações entre alunos transgêneros e suas escolas são pacíficas, e algumas já foram parar na Justiça. Michael Silverman, de Nova York, representa a família de Coy Mathis, uma garota transgênero de seis anos do estado de Colorado.
O motivo do processo foi o fato de a escola ter definido que a criança seria obrigada a usar um banheiro separado das demais meninas.
"Se fosse só um banheiro, então a opção neutra estaria bem. Mas é sobre realmente ser aceita", disse a mãe de Coy, Kathryn Mathis. "O que acontece agora é que eles te chamam de garota, mas você não é realmente uma garota, então não te deixam agir como uma. E isso faz um estrago incrível."
Essas crianças estão começando a ter uma voz, e acho que isso é o que tem feito as coisas interessantes e desafiadoras --e difíceis, às vezes--, dependendo da família, da criança ou da escola" - Roberto Garofalo, Hospital Infantil Lurie, de Chicago
A reportagem da Associated Press procurou a escola de Coy, mas ela não se pronunciou.
Os precedentes abertos nos últimos anos e a evolução da posição de especialistas sobre a condição de pessoas transgêneros têm feito com que as crianças e adolescentes que se identificam com um gênero diferente do biológico possam viver mais abertamente e com maior apoio.
"Essas crianças estão começando a ter uma voz, e acho que isso é o que tem feito as coisas interessantes e desafiadoras --e difíceis, às vezes--, dependendo da família, da criança ou da escola", afirmou à AP Roberto Garofalo, diretor do Centro de Gênero, Sexualidade e Prevenção de HIV do Hospital Infantil Lurie, de Chicago.
No caso de Ryan, sua integração escolar tem tido, até agora, poucas consequências negativas. Uma de suas colegas do quarto ano do fundamental resumiu tudo com uma frase: "A maioria das pessoas esqueceu que um dia ela já foi um menino", disse a garota.


 

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