Este texto parte de algumas leituras que tenho feito da obra de Michel Pêcheux (e alguns textos de quando o autor usava o pseudônimo de Thomas Herbert) e do meu percurso no transfeminismo. Percursos de leituras, que mobilizaram gestos de interpretação aliando um dispositivo teórico (do discurso) e analítico (transfeminista). Não apenas uma interpretação teórica sobre gênero, mas que também impacta sobre minha própria percepção enquanto sujeito na prática simbólica e política. A análise do discurso fundada por Pêcheux trabalha no espaço contraditório (entremeio) do materialismo histórico, da linguística e da psicanálise.É justamente daí que um objeto próprio a essa disciplina ganha contorno: o discurso. Caminhar neste caminho do entremeio significa dizer que a história, a língua e o inconsciente não são transparentes para o sujeito. É neste espaço de suspensão da interpretação automática que existe um espaço privilegiado na qual podemos lidar com o sentido de uma outra forma; uma forma não transparente, não essencializada.
A análise de discurso permite um duplo movimento: de descrição e interpretação. A descrição é o momento quando deixamos de considerar uma relação necessária entre linguagem e mundo e damos voz para o outro discurso (não-dito) que constituiu o próprio discurso. Caminhamos num espaço do silêncio, como diria Eni Orlandi, determinado pelo interdiscurso. Num segundo momento, da interpretação, é espaço de tomada de posição do analista, uma responsabilidade ética como já disse Pêcheux e inevitável (política). Para mim, isso significa que enquanto analista de discurso, observo as discursividades através de recortes no interdiscurso que julgo pertinente, observando certas regiões do dizer que se tornam mais ou menos regulares (as formações discursivas), os sentidos que ali circulam e a relação destes sentidos com os sujeitos e suas identidades em uma dada condição de produção; como transfeminista, a partir desta análise, ao perceber a “textualização do político” por meio da materialização da ideologia em discurso e ao tomar uma posição enquanto transfeminista, desnaturalizo certas relações de poder. Trata-se, de toda forma, de “devolver a opacidade do texto ao leitor”.
O que isso tem a ver com a transgeneridade e disforia? Bom, primeiro é necessário observar que Pêcheux estava muito interessado na crítica às ciências sociais e à linguística na medida em que estas ciências estavam atravessadas pela ideologia burguesa/idealista. Ele nos mostra o papel da ideologia, já nos textos assinados como Thomas Herbert, e sua relação com as ciências. Pêcheux nos mostra lá mesmo onde tudo parecia a mais ordem natural das coisas, em um mundo semanticamente normal, é que está o recobrimento/apagamento ideológico da política, da história, do sujeito. Estas ciências, portanto, partem de evidências sobre o mundo que são, na verdade, produzidas por um recobrimento ideológico. Evidências sobre a existência de “objetos e pessoas”; “razão e emoção” e “objetivo e subjetivo”. A ideologia se desdobra, portanto, entre o empírico e o abstrato como forma do idealismo se apropriar destas ciências. Pêcheux irá entender então a importância de se pensar em uma teoria materialista do discurso, em que como ele mesmo disse, não irá resolver as contradições, mas irá lidar com elas de outra forma: materialista.
O que significaria, portanto, pensar uma teoria não subjetivista da transgeneridade? Isso significaria pensar a disforia fora dos moldes da atual psiquiatria que vêm aliando empirismo e subjetivismo na apreensão/construção de um objeto de conhecimento: a transgeneridade vista como disforia/patologia do gênero. Portanto, trata-se de entender aqui a forma material e contraditória da transgeneridade, sua relação com a ideologia e o gênero. É indispensável pensar aqui a relação da transgeneridade com a cisgeneridade. Afinal de contas, a cisgeneridade não é o domingo do sexo (parafraseando Pêcheux quando ele diz que a poesia não é o domingo do pensamento). As evidências sobre pessoas trans* serem doentes, necessitarem de avaliação e cuidados de médicos cisgêneros, dentre tantas outras manifestações, não caem do céu. Elas partem de como a forma-sujeito do gênero, constituída (assujeitada) historicamente e individualizada pelo Estado, produz sentidos sobre o sexo/gênero. Esta forma-sujeito é a cisgênera. A cisgeneridade interpela os sujeitos em seu desígnio de sexo, produzindo evidências objetivas e subjetivas sobre o sexo, dando coerências às identidades de homens e mulheres; homossexuais e heterossexuais; macho e fêmea, etc. A transgeneridade existe porque a ideologia (ou gênero/sexo) funciona pela falha. E por existir falha que é possível resistência às normatividades.
A psiquiatria trata as pessoas trans* de forma colonizadora/civilizatória. Pra mim não há dúvidas que, muito ao contrário do que acreditam fazer, médicos psiquiatras não estão lá para “curarem” a disforia. Estão lá (nos espaços institucionais das clínicas) para justamente reproduzi-la de certa forma (mesmo que pela contradição). A psiquiatria parte de um modelo de gênero que conjuga ora o empirismo ora o subjetivismo para produzir evidências sobre os “transtornos de gênero”. Em um mundo semanticamente normal, sabemos o que é ser homem ou mulher. É isto (o que todo mundo sabe sobre homens e mulheres) que estes médicos esperam para a emissão de laudos (mediação para o reconhecimento civil e médico de pessoas trans*). Espera-se, portanto que a fala destas pessoas (a identidade subjetiva) reflita de forma transparente o que estaria ancorado a uma base biológica (empiricismo). Os sujeitos que escapam desta refração transparente entre o concreto e o abstrato são ignoradas, empurradas por debaixo do tapete: são as travestis marginalizadas, prostitutas.
Acontece que o problema aqui é que a (trans)generidade não é nem da ordem do abstrato nem do empírico. É material, portanto, contraditório. Existem aqui múltiplas formas do sujeito lidar com a disforia de gênero. Narrativas não tradicionais sempre escapam. A psiquiatria, ao não conceber a falha do gênero como constitutiva (justamente por não levar em consideração a materialidade) das identidades, acaba por nos agredir. A psiquiatria, ao partir das evidências sobre a forma-sujeito cisgênera pode (tem o privilégio social de) apagar o político, a história e até mesmo o sujeito. Trata-se do típico discurso terapêutico, que acredita que por estar apartado do político, poderia curar (seria através da fabricação do consenso?). Mas o afastamento da contradição tem um preço muito caro para as pessoas trans*. Proponho um não retorno nesta questão: trata-se de compreender, sob o primado do outro sobre o mesmo, como a contradição irrompe em nossos corpos, como assim textualizamos estas relações de poder pelo simbólico.
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