terça-feira, 10 de setembro de 2013

O terceiro sexo (Revista Super Interessante - 185, fev. 2003)

O que determina o sexo de uma pessoa? As características do corpo ou da mente? Até que ponto o que consideramos anomalia é apenas uma diferença que deveria ser respeitada em sua especificidade? Mergulhe em um dos debates mais quentes da ciência atual: o que são e quantos são os gêneros que compõem a espécie humana.
 
A pergunta pode parecer fácil. O que determina o sexo de uma pessoa? Mas a resposta não é tão óbvia assim. Essa dúvida tem atormentado o meio médico, gerando debates acalorados e pilhas de estudos em alguns dos maiores centros de pesquisa do mundo. O senso comum diz que o sexo masculino acontece quando a pessoa tem um pênis e um par de testículos. E o feminino, quando há vagina e ovários. E não se fala mais nisso, certo? Errado. Há pessoas que têm absoluta certeza de que pertencem ao sexo oposto àquele que seus genitais indicam.
Talvez então a resposta esteja nos hormônios sexuais (havendo o grupo daqueles que causam voz grossa, no caso dos hormônios masculinos, e o grupo dos que fazem crescer as mamas, no caso dos femininos). Errado de novo. Esse é um critério ruim porque os endocrinologistas já se cansaram de ver mulheres que têm maioria de hormônios masculinos no corpo e vice-versa. Então a resposta só pode ser a análise genética, já que todos sabem que se os genes se unem em cromossomos no formato XX a pessoa é mulher e se for XY a pessoa é homem. Outro erro, pois ocorre várias vezes o que os especialistas chamam de “mosaicos”, misturas na formação cromossômica que podem desacreditar qualquer conclusão taxativa nesse campo. E é melhor nem pensar que o que distingue o gênero masculino do feminino é o comportamento, porque as várias preferências sexuais que as pessoas adotam reduzem a cinzas qualquer conceito radical de gênero.

Essa dúvida sobre o que realmente define o sexo de um indivíduo está criando um drama ético crescente por causa de pessoas para quem nenhum desses critérios oferece uma resposta satisfatória. São indivíduos que nascem com partes de genitais dos dois sexos: testículos, ovário, pênis e vagina combinados das mais diversas formas ou em dimensões incomuns, formando nove tipos diferentes de alterações anatômicas. Em relação a eles, fica impossível ao médico dar a famosa resposta aos pais, na maternidade, sobre qual é o sexo do recém-nascido. Engana-se quem pensa que se trata de um drama raro, uma obra exótica da natureza fadada a virar uma atração de circo. Os cálculos mais conservadores admitem que um em cada 3 mil bebês nasce com essa morfologia, em suas várias formas (no Brasil, isso significaria uma população de mais de 56 mil pessoas).

Pesquisadores como Anne Fausto-Sterling, professora de Biologia Molecular da Universidade de Brown, no estado americano de Rhode Island, e especialista no tema, garante que o número é o dobro: um bebê em cada 1, 5 mil. Há muito mais pessoas com “genitália ambígua” do que albinos, por exemplo, que nascem à razão de uma pessoa em cada 17 mil. O número sugerido por Anne se aproxima da taxa de incidência de pessoas com esclerose múltipla ou cálculo urinário (cerca de uma pessoa em cada mil adultos). É provável que você até já tenha conhecido alguém assim. São tantos que os manuais médicos mais modernos aceitam um termo que, pelo menos gramaticalmente, cria para eles uma terceira categoria de classificação sexual. Nem homens nem mulheres, eles são os portadores de “intersexo” – uma espécie de terceiro sexo entre os humanos.

Na década passada, o intersexo começou a abandonar o silêncio das clínicas médicas para ganhar espaço em estudos cada vez mais numerosos sobre sexualidade. Muitos desses estudos consideram que, devido a pessoas como essas, três sexos ainda são pouco para definir a raça humana. A própria Anne Fausto-Sterling defendeu, em dois artigos publicados na revista americana The Sciences, a existência de cinco sexos, sendo eles o masculino, o feminino, o “herm” (de hermafroditas, pessoas que possuem formações de testículos e de ovários ao mesmo tempo), o “ferm” (pessoas com ovários e alguma expressão da genitália masculina) e o “merm” (indivíduos com testículos e algo da genitália feminina). Segundo o psiquiatra Ronaldo Pamplona da Costa, autor de Os Onze Sexos, cinco tipos sexuais também são pouco. Para ele haveria na verdade 11 sexos, sendo dez as versões masculina e feminina de heterossexuais, homossexuais, transexuais, gays e bissexuais. Por fim, tornando o número ímpar, viriam os hermafroditas.

Mas, se é aceito plenamente e investigado por um número cada vez maior de pesquisadores como uma alternativa ao conceito que divide os seres humanos em apenas homem e mulher, o intersexo não tem a mesma tolerância na prática médica. Nos hospitais ele é estudado e discutido apenas com o objetivo de ser “normalizado”. É a norma hoje no meio médico em quase todo o mundo que essas pessoas com genitália ambígua devem ser tratadas o mais cedo possível, de preferência ao nascerem, e transformadas cirurgicamente em homens ou mulheres. Os manuais oficiais ditam regras como a seguinte: se o recém-nascido tiver um pênis de tamanho inferior a 0,9 centímetro (tecnicamente chamado de micropênis), deve ser operado. Entenda-se: deve ser transformado em mulher, com esse pênis já anatomicamente constituído se transformando em um clitóris. Após a cirurgia, os manuais recomendam iniciar um tratamento medicamentoso com a ingestão de hormônios sexuais.

Centros de saúde mais cautelosos preferem, antes de optar por uma cirurgia, recorrer a uma junta médica multidisciplinar, exames genéticos e hormonais – mas esta não costuma ser a regra geral e, na maioria dos serviços, mesmo quando se consulta uma junta, o objetivo é que ela não demore muito tempo para decidir o sexo que terá o bebê. A questão é: os médicos – ou mesmo os pais – têm o direito de tomar essa decisão em nome do paciente?
As cirurgias para determinar o sexo de bebês são aceitas desde a década de 60, o que reduz as possibilidades de estudos de longo prazo que confirmem ou neguem virtudes para essa intervenção na natureza dos recém-nascidos e principalmente seus efeitos na vida adulta do indivíduo. Enquanto a questão era tratada em segredo apenas por médicos e parentes na discrição dos consultórios, estava tudo bem.

O problema para os médicos é que essa legião de pessoas com intersexo, operadas ou não, começou a se organizar em entidades e pedir o fim das cirurgias. “Operar um bebê sem saber qual será ao certo o sexo e sem que ele possa participar do processo dizendo claramente qual é seu desejo é um ato extremamente arbitrário e danoso”, diz Cheryl Chase, presidente da Intersex Society of North America (Isna), a organização não-governamental norte-americana que reúne portadores de intersexo e é respeitada no meio acadêmico como a mais organizada defensora de uma “moratória” geral nas cirurgias de bebês. A Isna tem uma vasta lista de pessoas operadas quando crianças ou ao nascer que, depois de adultas, optam pelo sexo oposto àquele que foi decidido nos hospitais. A maioria deles tornou-se homens barbados com vagina, já que cirurgicamente é mais fácil transformar os bebês em meninas (fazendo de um pequeno pênis um clitóris, por exemplo) do que em meninos, o que necessitaria de um tipo de reconstrução do tecido peniano.

Do outro lado desse debate, na posição de vidraça, os médicos argumentam que não há outra saída para a inclusão de crianças na sociedade. O intersexo jogaria a pessoa num tipo de limbo que ela só deixaria depois de se adaptar ao padrão homem-mulher. “Filosoficamente, faz muito sentido a queixa de que um paciente precisa opinar sobre o que vai ser feito dele”, afirma o endocrinologista pediátrico e professor livre-docente da Universidade de São Paulo (USP) Durval Damiani, para avaliar em seguida que na prática isso seria algo impossível. “Para pessoas normais essa pergunta parece idiota, mas não é: na escolinha, essa criança iria utilizar o banheiro dos meninos ou das meninas? Que nome ela vai ter?”, diz Damiani, que trabalha no Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo, centro que criou um serviço multidisciplinar para tratar da questão e que já atendeu mais de 400 casos de crianças com intersexo.

As dúvidas quanto ao que fazer se multiplicaram nos últimos dois anos, após o lançamento de um livro que incendiou esse debate no meio médico e tornou clara a diferença entre dois pontos de vista que são obrigados a conviver lado a lado: uma corrente majoritária que pretende adaptar todos os portadores de intersexo ao mundo das pessoas que são estritamente homens ou mulheres, e outra que prefere esperar até que o paciente possa decidir por ele mesmo. O livro é Sexo Trocado, de John Colap.

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