O que determina o sexo de uma pessoa? As características do
corpo ou da mente? Até que ponto o que consideramos anomalia é apenas
uma diferença que deveria ser respeitada em sua especificidade? Mergulhe
em um dos debates mais quentes da ciência atual: o que são e quantos
são os gêneros que compõem a espécie humana.
A pergunta pode parecer fácil. O que determina o sexo de uma pessoa?
Mas a resposta não é tão óbvia assim. Essa dúvida tem atormentado o meio
médico, gerando debates acalorados e pilhas de estudos em alguns dos
maiores centros de pesquisa do mundo. O senso comum diz que o sexo
masculino acontece quando a pessoa tem um pênis e um par de testículos. E
o feminino, quando há vagina e ovários. E não se fala mais nisso,
certo? Errado. Há pessoas que têm absoluta certeza de que pertencem ao
sexo oposto àquele que seus genitais indicam.
Talvez então a resposta esteja nos hormônios sexuais (havendo o grupo
daqueles que causam voz grossa, no caso dos hormônios masculinos, e o
grupo dos que fazem crescer as mamas, no caso dos femininos). Errado de
novo. Esse é um critério ruim porque os endocrinologistas já se cansaram
de ver mulheres que têm maioria de hormônios masculinos no corpo e
vice-versa. Então a resposta só pode ser a análise genética, já que
todos sabem que se os genes se unem em cromossomos no formato XX a
pessoa é mulher e se for XY a pessoa é homem. Outro erro, pois ocorre
várias vezes o que os especialistas chamam de “mosaicos”, misturas na
formação cromossômica que podem desacreditar qualquer conclusão taxativa
nesse campo. E é melhor nem pensar que o que distingue o gênero
masculino do feminino é o comportamento, porque as várias preferências
sexuais que as pessoas adotam reduzem a cinzas qualquer conceito radical
de gênero.
Essa dúvida sobre o que realmente define o sexo de um indivíduo está
criando um drama ético crescente por causa de pessoas para quem nenhum
desses critérios oferece uma resposta satisfatória. São indivíduos que
nascem com partes de genitais dos dois sexos: testículos, ovário, pênis e
vagina combinados das mais diversas formas ou em dimensões incomuns,
formando nove tipos diferentes de alterações anatômicas. Em relação a
eles, fica impossível ao médico dar a famosa resposta aos pais, na
maternidade, sobre qual é o sexo do recém-nascido. Engana-se quem pensa
que se trata de um drama raro, uma obra exótica da natureza fadada a
virar uma atração de circo. Os cálculos mais conservadores admitem que
um em cada 3 mil bebês nasce com essa morfologia, em suas várias formas
(no Brasil, isso significaria uma população de mais de 56 mil pessoas).
Pesquisadores como Anne Fausto-Sterling, professora de Biologia
Molecular da Universidade de Brown, no estado americano de Rhode Island,
e especialista no tema, garante que o número é o dobro: um bebê em cada
1, 5 mil. Há muito mais pessoas com “genitália ambígua” do que albinos,
por exemplo, que nascem à razão de uma pessoa em cada 17 mil. O número
sugerido por Anne se aproxima da taxa de incidência de pessoas com
esclerose múltipla ou cálculo urinário (cerca de uma pessoa em cada mil
adultos). É provável que você até já tenha conhecido alguém assim. São
tantos que os manuais médicos mais modernos aceitam um termo que, pelo
menos gramaticalmente, cria para eles uma terceira categoria de
classificação sexual. Nem homens nem mulheres, eles são os portadores de
“intersexo” – uma espécie de terceiro sexo entre os humanos.
Na década passada, o intersexo começou a abandonar o silêncio das
clínicas médicas para ganhar espaço em estudos cada vez mais numerosos
sobre sexualidade. Muitos desses estudos consideram que, devido a
pessoas como essas, três sexos ainda são pouco para definir a raça
humana. A própria Anne Fausto-Sterling defendeu, em dois artigos
publicados na revista americana The Sciences, a existência de cinco
sexos, sendo eles o masculino, o feminino, o “herm” (de hermafroditas,
pessoas que possuem formações de testículos e de ovários ao mesmo
tempo), o “ferm” (pessoas com ovários e alguma expressão da genitália
masculina) e o “merm” (indivíduos com testículos e algo da genitália
feminina). Segundo o psiquiatra Ronaldo Pamplona da Costa, autor de Os
Onze Sexos, cinco tipos sexuais também são pouco. Para ele haveria na
verdade 11 sexos, sendo dez as versões masculina e feminina de
heterossexuais, homossexuais, transexuais, gays e bissexuais. Por fim,
tornando o número ímpar, viriam os hermafroditas.
Mas, se é aceito plenamente e investigado por um número cada vez
maior de pesquisadores como uma alternativa ao conceito que divide os
seres humanos em apenas homem e mulher, o intersexo não tem a mesma
tolerância na prática médica. Nos hospitais ele é estudado e discutido
apenas com o objetivo de ser “normalizado”. É a norma hoje no meio
médico em quase todo o mundo que essas pessoas com genitália ambígua
devem ser tratadas o mais cedo possível, de preferência ao nascerem, e
transformadas cirurgicamente em homens ou mulheres. Os manuais oficiais
ditam regras como a seguinte: se o recém-nascido tiver um pênis de
tamanho inferior a 0,9 centímetro (tecnicamente chamado de micropênis),
deve ser operado. Entenda-se: deve ser transformado em mulher, com esse
pênis já anatomicamente constituído se transformando em um clitóris.
Após a cirurgia, os manuais recomendam iniciar um tratamento
medicamentoso com a ingestão de hormônios sexuais.
Centros de saúde mais cautelosos preferem, antes de optar por uma
cirurgia, recorrer a uma junta médica multidisciplinar, exames genéticos
e hormonais – mas esta não costuma ser a regra geral e, na maioria dos
serviços, mesmo quando se consulta uma junta, o objetivo é que ela não
demore muito tempo para decidir o sexo que terá o bebê. A questão é: os
médicos – ou mesmo os pais – têm o direito de tomar essa decisão em nome
do paciente?
As cirurgias para determinar o sexo de bebês são aceitas desde a
década de 60, o que reduz as possibilidades de estudos de longo prazo
que confirmem ou neguem virtudes para essa intervenção na natureza dos
recém-nascidos e principalmente seus efeitos na vida adulta do
indivíduo. Enquanto a questão era tratada em segredo apenas por médicos e
parentes na discrição dos consultórios, estava tudo bem.
O problema para os médicos é que essa legião de pessoas com
intersexo, operadas ou não, começou a se organizar em entidades e pedir o
fim das cirurgias. “Operar um bebê sem saber qual será ao certo o sexo e
sem que ele possa participar do processo dizendo claramente qual é seu
desejo é um ato extremamente arbitrário e danoso”, diz Cheryl Chase,
presidente da Intersex Society of North America (Isna), a organização
não-governamental norte-americana que reúne portadores de intersexo e é
respeitada no meio acadêmico como a mais organizada defensora de uma
“moratória” geral nas cirurgias de bebês. A Isna tem uma vasta lista de
pessoas operadas quando crianças ou ao nascer que, depois de adultas,
optam pelo sexo oposto àquele que foi decidido nos hospitais. A maioria
deles tornou-se homens barbados com vagina, já que cirurgicamente é mais
fácil transformar os bebês em meninas (fazendo de um pequeno pênis um
clitóris, por exemplo) do que em meninos, o que necessitaria de um tipo
de reconstrução do tecido peniano.
Do outro lado desse debate, na posição de vidraça, os médicos
argumentam que não há outra saída para a inclusão de crianças na
sociedade. O intersexo jogaria a pessoa num tipo de limbo que ela só
deixaria depois de se adaptar ao padrão homem-mulher. “Filosoficamente,
faz muito sentido a queixa de que um paciente precisa opinar sobre o que
vai ser feito dele”, afirma o endocrinologista pediátrico e professor
livre-docente da Universidade de São Paulo (USP) Durval Damiani, para
avaliar em seguida que na prática isso seria algo impossível. “Para
pessoas normais essa pergunta parece idiota, mas não é: na escolinha,
essa criança iria utilizar o banheiro dos meninos ou das meninas? Que
nome ela vai ter?”, diz Damiani, que trabalha no Instituto da Criança do
Hospital das Clínicas de São Paulo, centro que criou um serviço
multidisciplinar para tratar da questão e que já atendeu mais de 400
casos de crianças com intersexo.
As dúvidas quanto ao que fazer se multiplicaram nos últimos dois
anos, após o lançamento de um livro que incendiou esse debate no meio
médico e tornou clara a diferença entre dois pontos de vista que são
obrigados a conviver lado a lado: uma corrente majoritária que pretende
adaptar todos os portadores de intersexo ao mundo das pessoas que são
estritamente homens ou mulheres, e outra que prefere esperar até que o
paciente possa decidir por ele mesmo. O livro é Sexo Trocado, de John
Colap.
Disponível em: http://super.abril.com.br/saude/terceiro-sexo-443658.shtml
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