Conformidade de gênero é a expectativa de que homens devem se comportar e se apresentar de uma certa maneira, e mulheres, de outra. Em geral isso significa que o homem é forte, ativo e dominante, enquanto a mulher é frágil, passiva e submissa. A sociedade traz consigo inúmeras dessas regras: meninos usam bermuda, meninas usam saia; garotos jogam futebol, garotas fazem balé; homens têm que ser pegadores, mulheres têm que se fazer de difícil. Quaisquer desvios dessas normas é sinal de algo “esquisito” ou “errado”: “Joãozinho está chorando feito uma menininha! Para com isso, menino!”; “Não, filhinha, andar de skate não é coisa de menina, vamos procurar uma Barbie?”.
A imensa maioria das pessoas se ajustam e vivem bem seguindo a maioria dessas regras não-escritas; mas existem aquelas que não conseguem – ou simplesmente não querem – viver nessas caixinhas. Essas são as pessoas fora da conformidade de gênero. Isso pode acontecer de forma consciente ou não: do rapaz que decide ir de saia e salto alto para a aula, ao colega que tem um jeito delicado e nem se dá conta, até a mulher que vai de bermuda de skatista e cueca aparecendo para o trabalho. Infelizmente fugir dos padrões sociais para cada gênero é algo dificílimo. Atualmente, é muito mais provável que aqueles que de alguma maneira já desafiaram os padrões tenham a coragem de questionar outros – razão por que é muito mais comum encontrar homossexuais que vestem-se e portam-se fora da conformidade de gênero do que heterossexuais.
Nossa cultura valoriza muito mais o masculino que o feminino. Por isso que há uma certa tolerância com desvios do padrão heteronormativo, desde que isso ocorra na direção da virilidade, algo “melhor”. Hoje mulheres usam calças e até gravatas, por exemplo – mas homens não podem ainda usar saias. Isso é permitido apenas até certo ponto: uma mulher que se imponha demais no ambiente de trabalho passa a ser vista como “mandona”, enquanto um homem com a mesma atitude é considerado um “líder”.
É importante deixar claro que conformidade de gênero não depende de orientação sexual, identidade de gênero nem sexo biológico. Um homem cis e heterossexual pode perfeitamente decidir usar maquiagem. O rímel em seus olhos não significa que ele perdeu o tesão por mulheres nem que se identifica como mulher – e, óbvio, não é por propensão genética que alguém decide pintar ou não o rosto. O maior exemplo de como orientação sexual e conformidade de gênero são separadas acontece quando se encontra um gay cisgênero que segue os padrões da apresentação masculina à risca, o famoso “você é gay mas nem parece”.
Mesmo para pessoas trans a questão não é simples: muitas vezes, para conseguirem convencer o mundo de que “realmente pertencem ao outro gênero”, homens e mulheres trans acabam adotando códigos de vestimenta e comportamento estereotipicamente ligados a seu gênero verdadeiro (às vezes até de forma extremada), ou correm o risco de não serem considerados trans “de verdade”. Quando um médico tem o poder de decidir se você tem direito ou não a uma cirurgia de adequação de gênero, é melhor fazer tudo para que ele se convença de que você quer viver em outro sexo – e se aparecer à consulta usando um vestido florido aumentar suas chances de sucesso, então é isso vai acontecer.
A conformidade (ou não) de gênero não deveria ser um problema, mas, no mundo em que vivemos, aqueles que se enquadram nesses padrões são vistos como superiores aos que se desviam deles. Cria-se uma escala para classificar as pessoas de acordo com sua adequação à heteronormatividade: assim, infelizmente, muitas vezes os gays masculinos são considerados “de bem”, muito diferentes, superiores e mais desejados que as “bichas escandalosas”. Uma lésbica feminina é vista como mais aceitável que a caminhoneira. A mulher trans que “nem parece que nasceu homem” é melhor quista que outra que tem pomo de Adão pronunciado e voz grave.
Felizmente há indícios de que no futuro os padrões rígidos de comportamento para cada gênero se tornarão cada vez mais fracos. Lojas de departamento como a Target estão abolindo os rótulos “para meninos” e “para meninas” em suas seções de brinquedos e vestuário. Brinquedos como o Lego estão trabalhando ativamente para que não se levante barreiras entre os gêneros durante a brincadeira, e até a boneca Barbie agora mostra um garoto em seus comerciais de TV.
Ninguém é obrigado a seguir um padrão de comportamento com o qual não se sente confortável. Quer ser um homem másculo? Seja. Mulher frágil? Seja também. Homem afeminado? Fique à vontade! Ninguém deve dedicar seu desprezo e sua chacota às pessoas que fogem das normas. Estenda aos outros a mesma liberdade que é dada a quem segue os padrões heteronormativos.
Christopher Soto é um poeta e ativista de Nova York que se identifica como alguém fora dos padrões de gênero. Ele também quer mostrar outro lado da vida das pessoas trans e fora da conformidade de gênero: a alegria e liberdade de quem coloca a própria expressão acima das imposições sociais, tantas vezes soterrado pelas histórias de preconceito e violência. Com esse objetivo Soto escreveu uma lista de razões para se fugir da conformidade de gênero, que traduzimos a seguir.
- Minha comunidade é resistente pra caramba. Eu constantemente encontro inspiração em meus amigos que participam comigo de protestos, que se organizam para auxiliar pessoas em centros de detenção para imigrantes, que canalizam sua indignação em uma luta por justiça social. Eu sou grato pela oportunidade de viver com tantas pessoas apaixonadas, inteligente e persistentes.
- Meu guarda-roupas não se limita a apenas metade da loja. Eu não enxergo as seções masculinas e femininas quando saio para comprar roupas. Eu só enxergo as possibilidades. Às vezes eu encontro pessoas que não veem essas possibilidades e tentam me conduzir a um provador ou seção diferente da loja. Mas eu faço questão de que eles fiquem sabendo que SIM, ESSE FIO-DENTAL É PRA MIM MESMO!
- As pessoas sempre elogiam minha beleza. Sim, há muita gente na rua que mexe com pessoas trans e fora da conformidade de gênero. Também há muita gente que demonstra apoio. Gente aleatória que eu encontro na rua elogia minha aparência, minha valentia, minha personalidade. Às vezes eu recupero minhas forças com a gentileza de estranhos.
- Eu crio minha própria cultura, meu próprio futuro. Não há orientações para qual vai ser o look do meu gênero para a próxima década. Eu posso manter a aparência mais como um garoto cis, ou posso me vestir como uma mulher trans binária, ou posso continuar a misturar e combinar minhas roupas de outras maneiras. Meu gênero vai flutuar e se modificar, e isso é instigante. A única constante em meu gênero é sua resistência.
- Minha mãe é Sylvia Rivera, minha tia é Marsha P Johnson. Muitas pessoas transgênero ou fora da conformidade de gênero não contam com apoio de família nem da comunidade, nem dispõem de modelos ou boas representações na mídia. Muitas vezes temos que criar nossas próprias famílias a partir das pessoas transgênero e fora da conformidade de gênero que nos precederam. Minha mãe e minha tia são duas mulheres trans negras e latinas lendárias, Sylvia Rivera e Marsha P Johnson, fundamentais para o início da Revolta de Stonewall.
- Eu aprendi a ter confiança e a me defender. Aprendi a sair de casa e não dar a mínima para a ingenuidade alheia. Eu tenho plena confiança em minhas decisões e minha aparência. Quando se foge da conformidade de gênero, você tem que aprender a ignorar e combater todos os preconceituosos.
- Eu me tornei a versão mais honesta de mim mesmo possível. Eu primeiro me declarei de gênero fluido, depois como alguém fora dos padrões de gênero. Ao longo dos anos eu aprendi novas palavras para descrever minha realidade, minha relação com gênero. Eu continuo me analisando e aprendendo a meu respeito, e informando o mundo sobre as possibilidades que vejo para minha existência. Sim, sou capaz de me tornar qualquer coisa que eu queira (em meu gênero e outras coisas).
- Não deixo de ter medo, mas sou valente. Às vezes eu fico com medo de me apresentar em público fora do binarismo de gênero. Até agora, 21 mulheres trans foram assassinadas neste ano apenas nos Estados Unidos. Quando eu saio de casa de vestido vermelho e barba por fazer, eu sou valente e mereço todo amor. Todas as pessoas transgênero e fora da conformidade de gênero são valentes e merecedoras de amor.
- Eu compreendo o que torna as pessoas desejáveis. Eu descobri a beleza nos aspectos mais diversos de meus parceiros. Meus parceiros nunca são reduzidos apenas a seus genitais ou sua proximidade aos padrões eurocêntricos de beleza. Eu me comprometi a desaprender a transfobia, racismo, gordofobia e desvalorização de pessoas com deficiência física.
- Eu tenho a oportunidade de escrever artigos como esse. Sempre que eu tenho a oportunidade de escrever sobre minhas verdades, minha vida, eu abro possibilidades dentro das quais outras pessoas podem existir. Eu sou grato por viver fora da conformidade de gênero porque, ao viver minha verdade, eu consegui ajudar outras pessoas a encontrarem suas próprias verdades também.
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