Vocês são convidados a familiarizar-se com a ideia de que a proporção em que masculino e feminino se misturam, no ser individual, está sujeita a consideráveis variações… A distinção não é psicológica; quando falam em “masculino” normalmente querem dizer “ativo”, e quando falam em “feminino”, “passivo”. É certo que existe esta relação. A célula sexual masculina move-se ativamente, procura àquela feminina, e esta, o óvulo, é imóvel, aguarda passivamente… mas com isso vocês reduzem, quanto à psicologia, o caráter do masculino ao fator da agressividade e seus afins. Terão dúvidas de haverem dado com algo essencial, se levaram em consideração que em algumas classes de animais as fêmeas são mais fortes e agressivas, e os machos são ativos apenas no único ato da união sexual… As mulheres podem despender grande atividade em diferentes áreas, e os homens não podem conviver com seus iguais se não desenvolverem um alto grau de passiva docilidade. (FREUD, 2013 [1933], p. 266 – 267)
Quando as ciências exatas, e suas grandes variações de aplicações estritas e calculáveis, serviram de modelo para os testes e resultados das ciências humanas, algo de óbvio impôs-se como resultado: a complexidade da vida humana, psíquica e social, não era facilmente passível de resultados tão exatos. Da segregação de jovens pelo sexo, da diferenciação infantil entre os impulsos até a conduta meramente imposta, estes são alguns poucos exemplos em que o suposto ficou assim considerado como um fato. Quando o assunto é gênero, a mistura de conceitos e nomes faz ruído: argumentos religiosos, argumentos biologizantes, quando, na verdade, a historicidade em que cada descoberta é feita contribui muito mais para a decisão de uma postura, ordem ou imposição, do que o bom senso tão faltoso nos “humanistas técnicos” que ao serem exatos em suas avaliações perdem de vista o fenômeno ímpar do psicológico.
Quando esses assuntos se misturam à Educação Infantil, o problema de ruidoso faz-se estrondoso. Ensinados, os seres humanos, a uma conduta que seria respectiva a tal sexo biológico, antes uma cela se coloca do que uma possiblidade de compreensão. Diante de tal ponto, “feminista”, “machista” e outros termos giram a balança da mesma questão:
Como ser uno ante a multiplicidade de formas e expressões da vida mental humana?
Quando a injúria e opressão recaem sobre grupos, antes, o que vemos é a injúria de si mesmo, apontada na direção de alguns que não puderam enquadrar-se na regra do “sentir e silenciar”. Não faltarão nomes e ditos. O fato é que a minoria na expressão o é somente em atividade explícita, todos nós temos a mistura de todos os fenômenos da vida psíquica, e sem si, somos todos “minorias”.
Sabe-se, que por detrás da face do imposto, há uma faceta inequívoca e inapreensível de cada um de nós: ela se chama Desejo. A palavra gênero já carrega sua conotação de diferenciação (no âmbito originário biológico) em espécies, famílias, reinos, e quando posta à frente do humano e tão somente humano Desejo, parece perder de vista seus critérios tão exatos… E não seria justamente a tentativa de paralelizar o desejo com o respectivo gênero a razão de uma visão extremamente preconceituosa, errônea e no mínimo, perigosa para todos nós?
Ser humano é carregar a marca da linguagem, a simbolização do mundo numa atmosfera infinita de significados e signos, de articulações da história de cada um. Quando as palavras masculino ou feminino tendem a abarcar os fenômenos dessa rede de complexidade, nada mais se poderia esperar: absolutamente ninguém, no limite, será enquadrado.
E justamente o que se faz essencial é tomado como suposto: gênero, molde, forma, são conteúdos há muito modificados e provavelmente ainda o serão ao longo da história da humanidade. Critérios necessários à mente científica humana servem mais como nomes para facilitar estudos do que a possiblidade de serem o mais adequado, ao menos a nível psicológico, social etc. O problema é que se negligencia justamente aquilo que em nós é inegociável e inabarcável: nosso Desejo.
Ser humano, dentre as infinitas e possíveis colocações e principalmente expressões, é ser constituído por esse movimento desejante, que migra de objeto em objeto, de relação em relação nesse mundo – antes simbólico que biológico. A emergência de tais problemáticas, atualmente, não se impõe apenas como estudos filosóficos, psicanalíticos ou acadêmicos, mas no limite, põe-se como um assunto de estatuto social. Cada vez que a educação se vincula a critérios estabelecidos do macho, ativo, homem e fêmea, passiva, mulher, todas as expressões de alteridade, expressões do mesmo ser humano que se manifestam por outro vieses, além de anômalos devem ser combativos.
No fundo, a outra face de cada um é a mesma face de todos: humanos muito mais pela relação não natural (simbólica) que desenvolvem pelo mundo, pelos seus “semelhantes” e pela forma como situam a si mesmo nesse aglomerado de possiblidades. O desejo nos funda e nos constitui como o homem que não deseja apenas a caça, a reprodução e o repouso (como há muito bastou): queremos o inalcançável do dito, o desejo do outro, a fome de tudo o que é real e não se encontra no mundo da matéria.
Quando um gênero significa mais complicação sistemática do que resultado humano, cabe a cada um se ver como desejo e procurar manifestar-se na possiblidade da vida em conjunto, seja nas vestimentas, na fala, na possiblidade de ser único e pertencer, ainda assim, a unidade da espécie.
Gêneros são imposições de fora. Mas o nosso Desejo é a imposição de dentro. Ainda que as ciências “exatas”, como a neurobiologia, as ciências cognitivas (etc.) estejam mapeando os processos cerebrais e cada vez mais evidenciando certo paralelo entre “comportamento” e aparelho cerebral, ficará sempre a pergunta que possivelmente essas mesmas ciências não responderão:
Gênero criado ou um desejo humano auto-imposto: o que melhor o situa no mundo?
Responder a essa pergunta talvez seja um passo decisivo na compreensão do que seja o fenômeno misterioso da existência individual de cada um de nós.
Fábio Moreira Vargas tem 20 anos e mora na cidade de São Paulo. É estudante de Filosofia na Universidade de São Paulo com especial interesse pelo diálogo filosofia e psicanálise.
Fonte: Ensaios de Genero
Dica de leitura de Kamlia Santos. Disponivel em: http://www.geledes.org.br/o-genero-criado-e-o-desejo-imposto-outra-face/#axzz3FSURQ1GZ